Domingo, 01 de Fevereiro

Eu Sou Tão Útil Quanto a Arte?

Uma crônica por Roberto

Foto: Hudson Souza/O Jagunço

Primeira Parte: Alarme

Saí às sete horas da manhã para o meu primeiro dia de trabalho. Deixei a casa à mercê de parentes desgostosos do meu comodismo. O ônibus ia lotado, com gente conformada deslizando entre si, numa sinfonia homérica que cantava sobre a sobrevivência, o estímulo mais vital à manutenção da vida.

Entre quilômetros e mais quilômetros até a firma, eu aceitava músicas que me distraíam daquela nua realidade, tão pornográfica, porque todos se revelavam, nada encobria os rostos tristes do cidadão que necessita, que precisa se alimentar. É como se a caça, dos homens pré-históricos, fosse substituída pela resignação do empregado que fica em silêncio ouvindo impropérios de patrões que não sabem o que desejam, porque não necessitam e não precisam sobreviver.

O motor ruge, arqueja nas mãos suadas do motorista, que escolhe em que parada deve parar, pois um passo em falso causaria a entrada de um “indivíduo suspeito”, além de que um passageiro a mais, no ônibus cheio, pode atrapalhar completamente o equilíbrio matemático.

Metais e mais metais se debatem entre as engrenagens do coletivo, mas nada abafa a conversa inescrupulosa de duas senhoras falando sobre vizinhos e julgando mulheres que não abraçam a tradição e revolucionaram seus lares. Nada, absolutamente nada de relevante. Não dizem sobre os trends topics do X ou sobre as últimas notícias do oriente médio.

Finalmente desço para trocar de condução. Vou a outro ônibus com a mesma estrutura, a não ser pelo vendedor ambulante que irrompe o silêncio apaziguador que me fez tirar os fones, que só serviam para que eu não me conectasse com a atmosfera desgraçada do ambiente anterior. “Primeiramente, bom dia” é o discurso esperado, seguido do cotidiano “bom dia, pessoal” que faz uma das minhas têmporas querer explodir de raiva. Definitivamente não são bons dias, meu querido ambulante. Mas ele não tem culpa. Na verdade, ele só tem méritos, como apontado durante as enumerações sobre sua vida regressa, que quase sempre envolve algum assassinato e passagens pela polícia.

Atravesso a ponte da Barragem do Bacanga observando os pescadores fazendo a atividade diária, sem me perguntar a causa daquilo. Sobrevivência ou capricho? As pequenas embarcações balançam, quase viram com o vento matinal das oito horas da manhã.

Chego na firma antes do chefe, para parecer que me importo com o que acontece dentro do prédio. Só queria ser contratado de uma vez, mas, aparentemente, a vida não é um morango.

Um dia longo de trabalho movendo equipamentos, ligando tomadas, acendendo e desligando luzes, repondo água da garrafa, jogando conversa fora. Adoro esse lugar, adoro bajular a programação da televisão e decorar o nome das apresentadoras. “Acho que isso renderia uma contratação”, exaspero, em tom irônico para os superiores.

Desligamos tudo na sala. Rumo ao restaurante para repor algo dentro de mim, apesar de saber que não é o que eu realmente quero. Enrubescer com a notícia do cardápio, que traz, em letras garrafais, feijoada como prato principal. Recompensa? Não sei. Pelo quê? O que fiz para merecer isso? A divindade traz alguns mistérios da fé, a qual eu nem mesmo tenho.

Segunda Parte: Volta Para Casa

Findado o jantar, recorro de novo aos ônibus da cidade. Alguns sujeitos reclamam pela demora, mas é só um motivo para conversar, porque não existe nenhum outro assunto para discorrerem. Não entro no temário, permaneço inalterado, interrompido, vez ou outra, por um olhar desconhecido. Sinto o perfume sensual, flerto em silêncio, mas não ultrapasso essa linha, não ultrapasso as mãos nuas que pedem parada ao coletivo, levando um pseudo amor dentro dele.

Pego o meu ônibus sentido uma alegria estranha. O fone de ouvido me desconecta até o meu ponto, onde desço rumo a casa que deixei há doze horas atrás. Passo por um bar e ouço, de relance, uma melodia chorosa. A sofrência adentra cada vez mais os meus dias. Lembro do meu fim. Completo a arte que sai das caixas de som com a minha própria experiência.

A canção retira o sofrimento do ser que o ouve. Ele emerge nas letras, se vê descrito por um compositor que nunca conheceu e nunca conhecerá o ouvinte, bem como desconhece os motivos do sujeito, que, como a nomeação sugere, é subjetivo.

Como a arte faz isso? Como o artista adentra um sujeito o qual desconhece? São dois estranhos e, ao mesmo tempo, dois íntimos.

Terceira Parte: Delírio Filosófico

A palavra central da equação é “vinculação”. O artista e o espectador não se vinculam porque é conveniente, pois teria que existir uma relação lógica que influenciasse diretamente o gosto de quem consome a obra. Além disso, todo produtor saberia o passo a passo que deveria ser seguido para alcançar a instância máxima de vinculação. Tudo se tornaria um método, com a única intenção de comercializar - no grego, por exemplo, as palavras arte (techni) e técnica (technically) são semelhantes.

Uma coisa interessante é que o artista, quando inicia sua carreira, na imensa maioria das vezes, não pretende, de maneira nenhuma, se vincular com quem consome a sua arte. A arte, inicialmente, não será comercializável. Ela servirá apenas como manifestação da mente do criador, o qual precisa dizer o que pensa, ou então ele morrerá num belo dia e levará, para um túmulo frio e esquecido, todo o arrependimento de nunca ter falado.

A arte é subjetiva, pois diz respeito ao único sujeito que a produz. Até aí tudo bem, mas… e o espectador? O espectador existe, e a obra feita o atinge sem intenção de o atingir, como um tiro dado em meio à escuridão, tiro este que nem sequer foi propositalmente disparado.

Mas a vinculação não acontece ao acaso. Primeiro precisamos entender que toda obra é completamente vazia ao espectador, porque ela não existe antes de ser vista de fato, fazendo sentido apenas ao criador, que é a verdadeira fonte do sentido colocado nas entrelinhas da obra, e que não pode forçar o espectador a entender o significado literal do produto. A arte é, assim, um bolo de trigo sem recheio ou cobertura.

A obra funciona como uma sessão de terapia para o autor, acolhido no divã do espectador, responsável por ouvir os lamentos do artista, que discorre sobre si mesmo, sobre suas frustrações e alegrias, num ato egoísta e desesperado de ser ouvido e de se ouvir, porque, como um grande mestre disse um dia, as respostas estão dentro de nós mesmos. Já o espectador o acolhe num ato de empatia extrema, se dispondo a entender.

A discussão desse excerto gira em torno da utilidade da arte, que pode ser considerada inútil, mas não é essa a questão. Apesar de a arte ser - ou não - inútil, ela não se pretende ser útil, em nenhum momento isso foi proposto, mas é fato que ela interfere diretamente na sociedade.

No fim, mesmo que a arte seja um bolo sem recheio, algo genérico, ela colore de maneira especial o mundo ao nosso redor e contribui positivamente no entendimento do sujeito como tal. A arte é o molde perfeito para comportar nossas experiências pessoais, nossas dores e alegrias; é o molde perfeito para ressoar, para amplificar, para fazer com que nós nos coloquemos na voz, no pincel, nas linhas e nas infinitas faces do artista.

Quarta Parte: Ressaca Pré-Adquirida

Percebi que estava sentindo um gosto bom na boca, e tudo ao meu redor parecia mais alegre. Sim, era sexta-feira. O álcool se acumulava no meu corpo. Essa discussão sobre a utilidade da arte foi um erro. Tardei demais a chegar em casa. Minha mãe se preocupou desnecessariamente nas muitíssimas chamadas não atendidas. Acho que eu deveria prestar mais atenção nas minhas andanças.

Hudson Souza - o Roberto

Pseudo-filósofo e editor do O Jagunço, atualmente cursa Jornalismo na Universidade Federal do Maranhão. Sua escrita é voltada para devaneios existenciais, já que não pode-se pensar sobre o que não existe.