Sexta-feira, 20 de Dezembro
A Sensação de Conforto - Ou Não - Causada Pela Retrospectiva Spotify
Como os outsiders dialogam com o pertencimento em relação ao indie?

Ilustração: Daniel Kurta/O Jagunço
Escrevo em dezembro de 2024, um ano não bissexto repleto de conquistas pessoais que não tiveram nada relacionado a pedidos sacros e agradecimentos a Deus - seja lá qual o conceito religioso do leitor. As preparações para as festividades estão a todo vapor. Alugam-se casas, compram-se roupas, limpam-se carros, pedem-se desculpas (acho que essa expressão está incorreta).
Por sermos uma sociedade majoritariamente católica, comemoramos o nascimento do bastião religioso das mais diversas formas. O brasileiro mescla sentimentos e sentidos de um jeito fervoroso, como nos casos onde a música de celebração do natal é Tarcísio do Acordeon.
Após um ano de incessante expectativa dedicada à rotação da Terra em torno do Sol, finalmente a boa notícia vem: “feliz ano novo”. Que besteira, apenas um motivo para nos reunirmos num dia qualquer e tomarmos umas gelosas com pessoas carentes de afeto que não se pode expressar mutuamente quando cientes de suas próprias ações.
A vida coletiva na cidade está cheia desse tipo de oportunidade de aceitação. Bebemos para sermos iguais aos outros que também bebem; comemos para sermos iguais aqueles que também comem; choramos e rimos em homenagem aqueles que eram, ou são, iguais a nós.
Dezembro marca o lançamento de uma estatística curiosamente artificial e meramente marqueteira: a Retrospectiva Spotify. As plataformas sociais enchem-se de pessoas que têm orgulho do seu gosto musical, pois ele as constituem como sujeitos. Se quiser conhecer o caráter de alguém, analise a sua playlist - inclusive é possível chegar a conclusões como o dualismo do bem e do mal, pois “quem não gosta de samba, bom sujeito não é”.
A indignação é geral quando um artista desnecessário aparece no nosso Top 5. O desespero surge no compartilhamento virtual da lista, que vai contar muito mais do que o indivíduo gostaria sobre o seu íntimo. A expressão “eu sou uma pessoa bem eclética” é absolutamente obliterada quando todas as músicas mais ouvidas são do Kanye West ou de uma banda de Folk Alcoholic Rock completamente desconhecida chamada Eldhrimnir.
Em todo o caso, a Retrospectiva Spotify funciona como uma estratégia mercadológica para garantir que a marca esteja no imaginário dos usuários e dos futuros usuários. É um fato artificial, por ser criada por uma empresa com propósitos específicos e não pelas pessoas que vivem no ambiente da criação, e, ao mesmo tempo, legitimamente orgânica, pelo fato das pessoas a compartilharem espontaneamente - apesar da requisição social que garante o “parecer” como um atributo mais relevante que o “ser”.
Saindo da bolha que diz respeito à sensação de pertencimento garantida pela legitimação do gosto musical no evento da Retrospectiva, existem os outsiders - termo empretado da Antropologia, que diz respeito a indivíduos que não se encaixam na sociedade em que vivem e, por isso, passam a vida procurando algo melhor. Essa parcela cativante tem uma característica interessante, e digo isso por fazer parte dela.
Primeiramente, vamos definir o estilo de música indie, que quer dizer “independente”. São artistas que não obedecem aos critérios estéticos, sonoros e comportamentais dos grandes pop stars. Eles se espalham por toda a cultura contemporânea, atraindo, geralmente, jovens que não querem fazer parte do grupo que ouve as mesmas músicas dos mesmos compositores, num loop infinito de repetição. Para eles, o fã dos grandes hits é um mero fantoche do coletivo.
Agora, vamos à característica central. É interessante observar que a própria rotulação do “eu gosto de música indie” não faz com que um indivíduo se afaste de um grupo inferior, mas os aproxima de um novo grupo tão semelhante quanto o anterior.
O mundo bateu a marca de oito bilhões de seres humanos vivendo ao mesmo tempo, pensando contemporaneamente sobre tudo que já foi pensado no passado e chegando às mesmas conclusões. É impossível ser único num mar de cópias do mesmo genoma. Por isso precisamos nos agarrar em coisas externas, porque, se não, viramos mais uma peça do gigantesco e massante coletivo.
Outra vertente peculiar desses sujeitos anormais e únicos são os “MP3 Boys”. Segundo Eduardo Molto - vocês devem reconhecer essa grande persona do O Jagunço Cultural - os MP3 Boys são “pessoas que baixam as músicas que querem”, evidenciando o sentimento de liberdade buscado fora do algoritmo dos streamings de música.
Eduardo ainda rememora os tempos difíceis do garimpo musical, quando a logística de salvar uma música no computador para o celular era frequente. “Em meados de 2016, eu acho, lançou o Snaptube, que é para baixar diretamente no celular”. Para ele, isso representou um alívio na vida sofrida do MP3 Boy, que ganhou mais visibilidade com a ascensão do aplicativo.
A palavra central dessa situação é “pertencimento”. O jovem precisa ter uma base psicológica que deve reger o seu estilo de vida, e isso encontra respaldo na Retrospectiva Spotify. Ela encaixa o indivíduo numa posição social confortável de igualdade com o seu círculo, que está, agora mesmo, compartilhando os seus gostos mutuamente.
A empreitada é, mais do que a celebração de um traço da personalidade individual, uma tentativa de pertencer à coletividade.

Hudson Souza - o Roberto
Pseudo-filósofo e editor do O Jagunço, atualmente cursa Jornalismo na Universidade Federal do Maranhão. Sua escrita é voltada para devaneios existenciais, já que não pode-se pensar sobre o que não existe.